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Gregorio Duvivier vive Jesus, aos 30 anos, no especial de Natal |
O “Especial de Natal Porta Dos Fundos: A
Primeira Tentação De Cristo”, em cartaz no serviço Netflix, ganhou
as manchetes nacionais e internacionais nos últimos dias por conta da sua forte
repercussão. A atração de 46 minutos é alvo de um abaixo-assinado que em uma semana angariou quase 2 milhões de assinaturas pela sua remoção da
plataforma de streaming e responsabilização dos produtores “pelo crime de
vilipêndio à fé”. Como se não bastasse, a Câmara dos Deputados aprovou a realização
de uma audiência pública com a presença de representante da Netflix para
prestar esclarecimentos sobre o especial.
Não há como negar o talento e
criatividade da trupe do Porta dos Fundos desde o seu surgimento (quando recebeu o Troféu APCA de comédia em TV/Internet).
Mas humor, como tudo em conteúdo atualmente,
é uma questão de gosto e temperamento, estratificado por mercados, nichos e
bolhas. Não se tem mais em grande escala o humor clássico universal de um
Carlitos de Charles Chaplin, dos Três Patetas, ou ainda a caipirice
de um Mazaroppi nem a pretensa ingenuidade de Os Trapalhões ou do Chaves de
Roberto G. Bolaños.
Da mesma maneira que um artista de
stand-up pode parecer hilário para uma parcela do público e absolutamente sem
graça para outro, os shows de comédia passaram a se especializar em seu nicho. Se
para uma parte do público a atração não tem graça alguma – e este é o meu caso –
outros fãs aficionados por este tipo de linguagem podem estar se regozijando
com as tiradas do programa de menos de uma hora que faz uma livre interpretação
sobre a preferência amorosa de Jesus. O mais importante de tudo isso, no
entanto, é que desgostar não pode nem deve servir de argumento para qualquer
tentativa de censura.
A Constituição Brasileira garante no seu
Artigo 5º, inciso IX: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente, de censura ou licença”. Isto
posto, voltemos às questões meramente artísticas do programa, que está muito mais sendo
acusado de blasfêmia, de ferir a religião, de agressão aos valores cristãos e
menos de divertir.
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Deus (Antonio Tabet), Maria (Evelyn Castro) e José (Rafael Portugal) |
A meu ver, se há um pecado nesta atração
muito bem produzida e com direção afiada, é mesmo a falta de graça no roteiro,
não trazendo um conjunto capaz de fazer rir. A história de humor bíblico
se passa em uma Noite de Natal, no aniversário de 30 anos de Jesus (Gregorio
Duvivier), quando ele chega após período passado no deserto para sua festa preparada
pela família. O pai José, a Mãe Maria, uma certa tia Lupita e também Deus o
recebem de braços abertos, ao lado de mais convidados. Só que ele volta da
viagem acompanhado por um suposto namorado,
Orlando (Fábio Porchat, também um dos roteiristas do curta-metragem). Há a visita dos Reis Magos, com presentes –
um deles roubou flores no caminho – e piadas típicas dos esquetes do grupo na
internet, com o sotaque e gírias cariocas na boca de todos e algumas expressões do universo gay
na boca de Orlando.
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Fábio Porchat vive Orlando no especial de Natal |
As tiradas do Porta dos Fundos são a
razão de seu sucesso principalmente na internet. Há altos e baixos entre os
vários esquetes, o que é compreensível dada a escala de produção industrial do
canal, com até três episódios novos a cada semana. Na sua maioria, os esquetes cumprem
o papel de realizar um humor criativo, sarcástico, cru e muitas vezes até chocante.
O Porta dos Fundos é uma bem-sucedida
produtora de humor, que começou em 2012, e cinco anos depois foi adquirida pela
gigante norte-americana Viacom (dona da MTV, Comedy Central e Nickelodeon,
Paramount, entre outras). O projeto de
internacionalização da trupe já rendeu um bom fruto. O especial de Natal do ano
passado exibido também pela Netflix, embora mostrasse um Cristo fanfarrão e
nada honesto na sua última ceia, não levantou ira equivalente à produção deste ano e foi
premiada com o Emmy International de melhor comédia, com troféu entregue nos
EUA em novembro último.
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Porta dos Fundos recebeo Emmy Internacional de Comédia nos EUA em novembro |
Lembremos que este não é nem de longe o primeiro Jesus
Cristo das artes a sofrer perseguição. A figura-chave do cristianismo já foi
inspiração a inúmeras obras do cinema, literatura, música, teatro e televisão –
e a polêmica sempre esteve presente. O grupo inglês Monty Python fez na virada
dos anos 70 para os 80 o fabuloso longa-metragem de humor “A Vida de Brian”,
que só se viabilizou com ajuda financeira do ex-Beatle George Harrison. O músico arcou com metade dos custos da obra, muito atacada na sua estreia até na pouco
católica Inglaterra.
Em meados dos anos 80, o cineasta francês Jean-Luc Godard lançou seu “Je Vous
Salue Marie”, centrado na figura da mãe de Jesus, que causou escândalo ao
transpor para uma família moderna a passagem bíblica. Três anos depois, foi a
vez do diretor Martin Scorsese lançar “A Última Tentação de Cristo”, que não se posicionou
como uma obra gospel, e foi baseado no não menos polemizado livro dos anos 50
de autoria do grego Nikos Kazantzakis. O ator Willem Dafoe personificou um
Jesus demasiado humano, nas suas dúvidas, medos, paixões e delírios. O escritor português José Saramago lançou em
1991 o livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, também bastante atacado pela
Igreja Católica e até pelo governo de Portugal, a ponto de o escritor se exilar
numa das Canárias, a Ilha de Lanzarote, de onde só saiu morto (em 2010).
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"South Park" - episódio de 1999 "Jesus x Satan" |
Agora, este “A Primeira Tentação de
Cristo” bebe muito na fonte da própria Viacom. Remete demais, embora sem o mesmo brilho,
à animação da casa “South Park”, série de humor negro e puro sarcasmo à
sociedade norte-americana que está aí há 22 anos mexendo com todos os dogmas e patotas,
provocando as normas do politicamente correto e fazendo chacota inclusive de
religiões. Já num episódio das primeiras temporadas de “South Park”, em 1999,
há uma batalha que se estenderia pelas décadas seguintes entre Jesus e o Diabo
(Jesus X Satan).
A recriação é vista numa sequência neste especial de Natal
para a Netflix, cheia de efeitos visuais. Mas faltam aqui o charme e a categoria da turma animada de Cartman,
Stan, Kyle, Eric, Kenny e outros do
desenho. São pestinhas endiabrados que provocam risos, ainda que perturbadores,
aos fãs incondicionais deste nicho. Na batalha entre o bem e o mal do Porta dos
Fundos, sobram efeitos especiais e falta graça.
Em resumo: eu não achei engraçado, mas defendo
até a última gota o direito de que quem quiser que possa rir deste especial de Natal.
SERVIÇO:
Netflix
Especial de Natal Porta Dos Fundos: A
Primeira Tentação De Cristo
Direção: Rodrigo Van Der Put
Elenco: Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Antônio Tabet e grande elenco.
Gênero : Comédia
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